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O piu do mocho

Eram sete horas quando saí para o passeio matinal com o cão, através do descampado traseiro à Tapada do Mocho. Ao dobrar o caminho do costume, avisto um bando de seis perdizes entretidas a debicar o pequeno-almoço na erva fresca, num silêncio pontuado pela vida breve que ali palpita: insectos, pássaros e talvez as rãs que ouvi coaxar nas noites quentes do verão passado… alimento a esperança de que se tenham mudado do Condomínio da Tapada para o muito mais fino Condomínio da Ribeira, mesmo que esta se resuma actualmente a um fio de água relutante. À minha aproximação, as perdizes debandam por entre os canaviais e montes de terra e entulho de obras particulares.
Fixo então o céu, alertada pelas gralhas estridentes. Parecem desafiar um peneireiro de ocasião que as sobrevoa indiferente, a visão a apontar o roedor que atravessa a aberta de mato que há-de designar-lhe o fim. Ou, quem sabe, o peneireiro descobriu, como eu, que os coelhos voltaram a saltitar por ali, pequenos, ágeis, espertos. E talvez isso seja tema de conversa entre as aves vigilantes que convivem nesta altura: pintassilgos e pardais, rolas turcas, pombos e gaivotas de visita à terra; além desse fenómeno recente capaz de fazer corar as gralhas de incredulidade: bandos de papagaios que gritam saudades de outras paragens, radicados no doce Portugal onde tiveram de aprender vagos trinados fadistas. Só não sobra nenhum mocho. Do outro lado da vida, anichado em memórias de infância, recupero mentalmente o piu do mocho que se ouvia no jardim de casa dos meus tios. Ou mochos. Quando a Tapada era o único aglomerado a arranhar o céu, erguida no meio do nada, e os caminhos até ela feitos de terra batida. Repito muitas vezes uma certa lição de humildade aprendida nas linhas tortas que sempre compõem os estranhos desígnios da vida: em criança olhava a Tapada, ao longe, e revirava os olhos jurando que nunca viveria num lugar assim inóspito. Pois foi mesmo onde acabei a morar com os filhos – que adoram a Tapada, mesmo sem mocho.
Este passeio diário prepara-me para o dia de trabalho que há-de iniciar-se na capital, duas horas e meia depois do café saboreado a besuntar manteiga nas torradas que o filho mais novo diz serem demais, a roupa entregue à ventania que assegura secagem completa a custo zero, os almoços orientados e o farnel despachado no saquinho das merendas para lembrar o cheiro da cozinha caseira em Lisboa. Aí hei-de encontrar um Campo Grande a transbordar carros numa condução insana, barulho, poluição, amenidade nenhuma para o peão. Penso então em Oeiras e no potencial imenso que sobrevive neste concelho onde ainda seria possível palmilhar um caminho diferente, atento às pessoas e à vida além do corre-corre quotidiano. Por que quer tanto Oeiras ser cidade? Por que não quer tanto Oeiras permanecer uma imensa vila ora beijada pelo mar, ora pela fertilidade de terrenos capazes de abastecer localmente e mais além, preservando a paisagem de luxo de que é naturalmente dotada, a avi-fauna e as vidas dos munícipes que talvez, até, pudessem trabalhar proximamente ao invés de investirem centenas de horas de vida a transportarem-se para aqui e para ali?
Moro em Paço de Arcos há 12 anos e sou feliz aqui. Mas o património natural além das paredes das nossas habitações, a nossa casa exterior, essa casa maior onde nos cruzamos com o Outro, seja o outro pessoa, animal, árvore, deve ser acarinhado. Acredito que só andando a pé tomamos consciência do que nos rodeia, nos seus pormenores, e aguçamos o espanto, a disponibilidade para ver, ouvir e sentir a ligação ancestral à terra. Por isso é que quem anda a pé se incomoda com o automóvel que acelera à vista de uma passadeira, não respeita a prioridade do peão, assalta passeios, intoxica a atmosfera em filas intermináveis, que se repetem de manhã e à noite. No interior dos carros, geralmente, um condutor nervoso ou pais irritados com os filhos agastados – que bem lhes faria sentir os elementos no corpo e descomprimir de um dia fechado na escola e nos empregos. Quem anda a pé saboreia ainda a sombra das árvores e o ar condicionado natural que oferecem. Ao andar a pé pomos em prática o sorriso, o cumprimento, a entre-ajuda. Aquela senhora que, como eu noutras vezes, escorregou na calçada e torceu o pé, por exemplo. Enfim, ao andar a pé tornamo-nos… mais humanos.
Quando vejo perdizes e coelhos a saltarem-me ao caminho, acende-se uma luz de esperança – a vida original resiste e está disposta a partilhar o espaço connosco. Seremos suficientemente inteligentes para aproveitar a oportunidade e o ensinamento? Este descampado fabuloso, atravessado por ribeira e vegetação exuberante, é particular e tem aprovado um projeto de construção de consulta impossível por quem vai tentando saber o que ao lado de suas casas está para acontecer. Oxalá a ganância não ameace os derradeiros equilíbrios e possamos, num futuro ao virar da esquina, não só levar filhos e netos a sentar-se junto da água da ribeira reconduzida ao leito, num parque verde naturalizado, como, com engenho, arte e paciência, ouvir de volta o piu do mocho que deu nome à Tapada.

Gisela Miravent, 2 de março de 2022 para A Voz de Paço de Arcos

A Voz Impresso | Série: 3| Nº: 39| fevereiro| 2022| Autoria: Gisela Miravent| Imagem: Ela Silva

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