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Alice, volta

Alice
Art: Ela Silva – Alice

O meu desejo para o Dia Internacional da Mulher? Que se deixe de celebrar o vácuo. Que se passe aos actos e mude o paradigma. Que se reconheça, ao mais alto nível, que a vasta maioria das mulheres trabalha, em Portugal e em grande parte da Europa (noutros continentes, trabalharão mais) 15 horas por dia, além das 8 horas, trabalho não remunerado: assistência a ascendentes, descendentes e comunidade; assistência à casa e à multiplicidade de tarefas quotidianas como compras, cozinha, roupa, limpezas, apoio ao estudo; escolas, reuniões e associações de pais e encarregados de educação; assistência a familiares e amigos em lares ou hospitais; trabalho pro bono em prol da comunidade; emprego, deslocações, e a inevitável marmita para poupar tostões extra. Carregando uma eterna culpa por parecerem estar sempre em falha nalgum lado ou a alguém: ou porque largaram o emprego a correr ou porque deixaram a casa a correr. Algumas pior que isto porque sujeitas a violência doméstica e sem maneira de quebrar o círculo de dor, outras mais difícil que isto porque separadas ou divorciadas, entregues a si próprias, talvez, com sorte, ao apoio de outra mulher. Vivam as avós. E sim, também há homens a criar filhos e a cuidar de familiares. Mas não é comparável. Interiorizemos quanto urge lutar pela alteração deste estado de coisas. Não somos todos iguais, SOMOS TODOS DIFERENTES. Fisicamente, emocionalmente. Uns mais fortes, outros mais frágeis. Uns com família, outros não. Uns gozam de uma saúde de ferro, outros carregam mazelas que não escolheram – assim como não escolheram um filho deficiente, um pai acamado, cairem em depressão. Uns moram perto, outros longe; uns têm filhos, outros não; uns contam com apoio e conforto económico, a maioria não conta senão consigo mesmo; uns ganham bem, a maioria ganha mal; uns mantêm empregada, geralmente mal empregada (seguro, segurança social, subsídios?), outros não; uns podem contratar serviços de recolha na escola, outros não; uns podem pagar explicações, ATL, actividades extra-curriculares e institutos de línguas, outros compram as senhas da cantina e pedem aos filhos que aguentem sozinhos em casa ou na rua, até à noitinha; uns podem comprar livros, viajar e fazer férias fora de casa, outros podem tentar que o salário chegue para pagar as contas correntes e as de supermercado até ao final do mês.

Passeio_II
Art: Passeio_II – Ela Silva

Neste mais um Dia Internacional da Mulher, o país e as empresas têm o dever de reconhecer o valor do trabalho de milhões de mulheres que poupam ao Estado biliões de euros. E o munem, de bandeja, com os contribuintes do futuro.

Por mim continuarei a lutar pela proteção à família e pelos direitos das mulheres e homens que escolhem tê-la e lhe devem carinho e proteção. Não sou sindicalista e não me reconheço nem um pouco na fraquíssima qualidade de trabalho da maioria dos sindicatos. Assustam-me com o seu pensamento estreito, discurso formatado e palavras de ordem deslocadas no tempo e nas premências contemporâneas. Lutarei pelo óbvio, por aquilo que depende apenas da inteligência, da solidariedade, da coragem política e visão social. E, vá lá, puro interesse económico, se souberem fazer contas que não de merceeiro: ocorre-me a generalização dos horários reduzidos para mulheres e homens cuidadores; da jornada contínua para mulheres e homens com filhos a cargo, qualquer que seja a sua idade, concedendo especial atenção às famílias monoparentais; do teletrabalho e da medição da qualidade do trabalho em função de objetivos, ao invés da contagem estrita de horas passadas no local de trabalho, a trabalhar ou nem por isso; da dispensa de horas para apoio na doença, no percurso escolar dos filhos ou educandos e para a prossecução justificada de estudos em nome próprio, enriquecendo-se e enriquecendo a sua prestação familiar e profissional. Que se valorize, precisamente, a diferença!

A título familiar, que seja feita uma avaliação honesta aos rendimentos (não o que se ganha, mas o que se gasta, contabilizando rendas e hipotecas sobre habitação e bens alimentares de primeira necessidade) para, por exemplo, isenção de IVA na água, electricidade e internet. Uma taxa familiar de IMI. Uma verdadeira saúde dentária – a ortodôncia não é um luxo, é, quase sempre, um imperativo e muitas intervenções rotuladas como estéticas não o são, de facto. As crianças usam aparelho porque gostam de ter ferros nos dentes?! Para quando, Portugal, acabar com a pequenez de vistas e com a ideia de que a vigiar o outro é que se obtém rendimento no trabalho, exaurindo física e mentalmente rios de mulheres – e sim, alguns homens – que, dos 50 em diante, somam dores e achaques por conta de nunca terem podido cuidar de si?

O nosso mundo do trabalho é ainda profundamente, muito profundamente mesmo, masculino. As mulheres entraram neste mundo sem que houvesse uma adequação de paradigma. Aquelas que quiserem vingar, ainda mais em cargos de direção e melhor remunerados, como que estão obrigadas a uma disponibilidade impossível. É cruel exigir que entreguem os filhos e a casa a prestadores e a terceiros de modo a encaixar num ideal de trabalhador herdado do século 19. Este não devia ser o dia-internacional-para-esquecer-os-outros-364-dias-do-ano-da-mulher.

Celebrar a vida, é que era.

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