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Abril agora e sempre – Contra-Almirante Martins Guerreiro

Recebe-nos na sua casa, numa sala cheia de memórias por onde passaram as histórias da História recente de Portugal. A sala onde decorreram as primeiríssimas reuniões que desaguariam no Dia Inicial Inteiro e Limpo cantado por Sophia de Mello Breyner Andresen.

As mesmas paredes que “escutaram” em surdina as palavras mágicas que mudariam para sempre este País que é o nosso – Abril, Movimento das Forças Armadas, golpe militar, democracia, descolonização, desenvolvimento, eleições livres, direitos e garantias, liberdade, liberdade, liberdade!

Palavras que se agigantariam e ditariam o fim de uma ditadura que prendia, torturava, e matava os opositores: quem não se lembra do assassinato de Humberto Delgado?

Portugal passou a ser um Estado de direito aberto ao mundo, apontando novos caminhos de ser e de estar. O povo recebia o poder democrático conquistado pelos capitães de abril e tomava nas mãos o seu destino. Éramos jovens fascinados com a vida, com a revolução, com a explosão de gente e de alegria nas ruas, a esperança renascida pela mão dos militares, os generosos heróis da nossa juventude! Era também o tempo em que tudo parecia ser possível…

A conversa ocorre a poucas semanas do 49º aniversário da revolução de Abril: pela primeira vez, os 49 anos vividos em democracia ultrapassarão os 48 anos vividos em ditadura!

Para o ano teremos as comemorações de 50 anos de democracia: pode lá ser? Vai ser muito, muito especial! Desceremos a Avenida da Liberdade, as Avenidas da Liberdade deste país no profundo respeito pelos que fizeram Abril acontecer e pelo muito que conquistámos, mas também em luta pelo MUITO que temos ainda para conquistar, pelo TUDO que ameaçam roubar-nos, pelo MUITO que é urgente reinventar na forma de fazer política!

O nosso entrevistado é acolhedor, senhor de uma memória invejável. Os valores fundadores de Abril estão bem vivos e são o fio condutor de uma longa e coerente vida política e cívica ao serviço da comunidade. Está consciente das alterações que ocorreram neste quase meio século e dos perigos que se perfilam: as questões sociais, éticas, económicas e políticas, a globalização selvagem, as guerras, o poder do nuclear, a inteligência artificial, as alterações climáticas, a redução das energias fósseis, o colapso das instituições, os cem milhões de refugiados que vagueiam pelo mundo…

É o futuro que o move, “militante” incansável da causa de uma cidadania activa por uma sociedade mais justa, mais igualitária e humanizada, onde prevaleçam os valores da solidariedade, da entreajuda entre todos.

“Tenho 82 anos, costumo dizer que tenho 28”, diz com um sorriso jovial o cidadão Manuel Beirão Martins Guerreiro, nascido em São Brás de Alportel, hoje Contra-Almirante Martins Guerreiro.

Do seu curriculum, diremos sumariamente que cursou a Escola Naval, onde se licenciou em Ciências Militares e Náuticas e a Faculdade de Engenharia de Génova, onde se licenciou em Engenharia Naval e Mecânica. Foi um destacado elemento na preparação e concretização do golpe que derrubou o Estado Novo. Integrou vários órgãos do Movimento das Forças Armadas (MFA), foi membro do Conselho da Revolução desde a sua criação até à sua extinção. É Contra-Almirante da Marinha Portuguesa, detentor de várias condecorações, destacamos a Grã-Cruz da Ordem da Liberdade, atribuída pela sua participação no 25 de Abril de 1974.

AVPA – Perante a ameaça real de uma extrema-direita em alta e que sonha rasgar os valores intemporais de Abril, qual é o sentimento de um Homem que, muito jovem ainda, arriscou a vida pela causa da liberdade?

MG – Importa sublinhar que nunca nos arrependemos da revolução que protagonizámos com sucesso e sem derramamento de sangue! A instauração da democracia em Portugal representou e representa um grande passo civilizacional. É doloroso e frustrante ver os valores humanistas que defendemos serem vilipendiados. Não queríamos que fosse assim, a verdade é que temos que trabalhar para que esta situação se inverta, para que caminhemos no sentido da defesa de uma sociedade mais justa, mais igualitária, mais humanizada.

Daí a necessidade de criar movimentos de cidadania que integro e que defendem os valores das liberdades e direitos fundamentais, valores que são pertença de todos nós e de toda a Humanidade.  

Os jovens têm que ser conquistados para a construção da democracia

Veja: vivemos numa sociedade egoísta onde dominam os princípios do individualismo, da superficialidade, do sucesso instantâneo, do ganhar dinheiro rápido. Falhamos todos ao não transmitirmos aos jovens a ideia de que temos o dever de prestar um serviço à comunidade e de que há mais vida para além do sucesso individual (que também é importante).

As políticas neoliberais defendem a ausência da intervenção do Estado na economia, a total liberdade dos mercados para atingirem os seus fins, esmagando todos os que se lhe oponham!  O “cada um por si” gera uma competição feroz que atira muitos cidadãos para as margens da sociedade.

Pessoas que trabalham no duro o dia inteiro e que não ganham o suficiente para comer, pagar a renda da casa, comprar medicamentos…não pode ser, não pode ser!  Esta situação gera uma grande insatisfação que a extrema direita explora em seu favor. Numa situação de pobreza as pessoas não estão mentalmente disponíveis para pensar em democracia: pensam apenas na sua sobrevivência e na dos seus filhos.

Defendemos a criação de um Serviço Cívico obrigatório (um ano, nove meses…), um modelo a definir por quem de direito. Não será um ano perdido, mas sim um ano ganho, pelo enriquecimento pessoal para a dimensão da vida nas suas múltiplas vertentes. Os jovens têm que ser envolvidos na construção da democracia, têm que ser conquistados, este debate tem que ser feito!

O Programa Político do MFA

AVPA – Cinquenta anos depois, que resta para dizer do MFA? Foi apenas um movimento corporativista motivado pelo descontentamento de militares do Quadro Permanente incomodados com a “concorrência” dos milicianos?

MG – O Movimento dos Capitães teve uma causa próxima corporativa, mas a causa principal foi, sem dúvida, a guerra colonial. Foi a guerra que, ao longo de 13 anos, foi inquietando as consciências dos militares do quadro permanente e que amadureceu as condições para que se tornasse claro que a solução tinha que ser política e não o perpetuar da guerra. Uma parte significativa dos militares que fizeram o 25 de Abril não tinha uma ideia precisa sobre a importância e a necessidade da elaboração de um programa político que sustentasse a acção militar contra o regime ditatorial.

Na Marinha tínhamos consolidado, ao longo de anos, ideias sobre esta necessidade; no Exército, no movimento em organização, camaradas como Melo Antunes, José Maria Moreira de Azevedo ou Sousa e Castro tinham consciência da importância de um programa político por nós elaborado antes de desencadearmos qualquer acção militar.

Almada Contreiras e eu entrámos em contacto com Melo Antunes e realizámos dois encontros em Algés. A definição das linhas fundamentais do futuro programa do MFA passou, em parte, por esta casa. Na minha estante de livros, figuravam os cinco volumes das conclusões e teses do III Congresso da Oposição Democrática em Aveiro. Melo Antunes viu-os e a sintonia de ideias e de princípios foi imediata! Estabeleceu-se um forte laço de confiança entre nós que nos permitiu avançar sem dificuldades.

Mais tarde, a partir do esboço inicial de Melo Antunes, um grupo mais alargado de oficiais dos três ramos das Forças Armadas, coordenados por Vítor Alves, elaborou a versão final do Programa do MFA, documento fundamental para que a acção militar do 25 de Abril se transformasse numa revolução por força da adesão espontânea do povo nas ruas de Lisboa …

Naturalmente que o programa tinha lacunas: nascemos e crescemos em ditadura, éramos jovens com pouca ou nenhuma experiência de poder, como exigir de nós a perfeição ou ausência de erros?

A Importância da cidadania

AVPA – Como nasceu a Rede de Cidadania de Oeiras (RCO)? Terão estes movimentos potencialidades para fazer frente aos perigos que os extremismos de extrema direita representam para a democracia?  

MG – O exercício da cidadania é a pedra angular de uma democracia participativa forte. Trata-se da nossa intervenção enquanto cidadãos livres e interessados na causa pública para pressionar os poderes constituídos para que, nas suas decisões, tenham em conta as nossas reivindicações! Um pouco por toda o País vemos populações que protestam contra o encerramento de Serviços de Saúde, de instalação de empresas poluidoras, etc. É necessário fortalecer estes movimentos, ainda relativamente frágeis, criando alguma articulação entre eles.

A RCO nasceu a partir de uma ideia base da campanha do candidato António Nóvoa à Presidência da República: a defesa do exercício da cidadania!

Terminada a campanha a questão da cidadania não se esgotou: decidimos continuar em frente e criámos a RCO. Já lá vão sete anos, reunimos regularmente, promovemos realizações diversas, criamos dinâmicas para fazer acontecer. Damos o nosso contributo possível. Não é fácil, mas temos que fazer um esforço para não ficamos reféns de quem move os interesses no terreno.

Um planeta nos cuidados intensivos

AVPA – O nosso Planeta encontra-se em estado de cuidados intensivos. Como vê a problemática das alterações climáticas?   Acredita que ainda estamos a tempo de reverter a catástrofe iminente?

MG – Não estamos todos na mesma fase de desenvolvimento. Há regiões onde haverá consequências gravíssimas, noutras pode haver regeneração. De comum acordo deveríamos tomar medidas para minorar esta tragédia, mas é uma missão muito difícil, o interesse do poder é reproduzir-se e não cuidar do bem comum.

Estão a ser dados passos da maior importância para o nosso futuro colectivo mas, infelizmente, tudo parece ser insuficiente perante a grandiosidade e a urgência do problema.

Defendemos a economia circular (reduz o desperdício, incentiva a reciclagem, aumenta o ciclo de vida dos produtos) em oposição ao estafado modelo do “produz, utiliza, deita fora”. A ordem de grandeza do desperdício é impressionante; no que respeita aos alimentos que consumimos atinge cerca de 30 a 45%.

O impacto negativo dos gazes de estufa produzidos pela sector da agropecuária ultrapassam já as emissões produzidas no contexto da circulação automóvel! Os grandes navios que cruzam os oceanos, a guerra, uma infinidade de causas destruidoras de um frágil equilíbrio. A luta global dos cidadãos em defesa da qualidade do ar, dos seus rios, das suas florestas, da biodiversidade é espontânea, mas tem muita força.

AVPA Gostaria ainda de lhe perguntar se o espírito de luta do jovem que queria mudar o mundo se mantém ou se desapareceu definitivamente.

MG – A resposta é sim, mantém-se bem firme. Continuo a olhar para a frente tentando adaptar-me às circunstâncias do mundo de hoje. Há problemas e acontecimentos que me incomodam muitíssimo.

AVPA – Contudo, os problemas do século XXI são tão diferentes dos que se colocavam em 1974! As incontornáveis alterações climáticas, os perigos de uma inteligência artificial descontrolada e que representa um risco para a Humanidade, as “fake news” que distorcem a realidade, o nuclear, a guerra na Europa. A falta de valores, uma nova ordem mundial que desponta…

MG Sim, muito mudou do ponto de vista do concreto, do tecnológico… Mas, em termos de princípios, não mudou assim tanto. Os valores humanistas, da liberdade, da justiça, são intemporais. A entreajuda será sempre uma pedra angular da comunidade. É urgente regulamentar esta competição feroz que nos mata e que destrói o nosso Planeta de forma irreversível! A economia neoliberal não se preocupa com as questões do ambiente, apenas com o lucro. 

Mas sim, interesso-me e preocupo-me com tudo o que diz respeito à Humanidade.

AVPA Por constrangimento de espaço, de uma longa conversa ficou de fora uma parte importante da mesma: as posições e escolhas de alguns dos principais protagonistas de Abril, as tensões internas, a forma como, no dia da revolução, tudo se encaixou na perfeição, evitando-se o derramamento de sangue. A singularidade de um movimento militar sui generis que não quis para si o poder conquistado (como acontece na generalidade dos casos) e que o ofereceu generosamente aos civis; e muitas, muitas outras “petites histoires” de que é feita a História dos povos.

E sim, os valores de Abril são intemporais!

Margarida Maria Almeida, Abril de 2023

NOTA: Este artigo não segue o Acordo Ortográfico vigente.

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