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O Efeito Lápide

A Voz Impresso | Série: 3 | Nº 38 | Dezembro| 2021 | Autoria: João Maria de Freitas Branco | Foto: Paulo Mascarenhas

Colocar uma lápide na fachada de uma casa, assinalando que esse local foi habitado por alguém que se distinguiu por obra feita com notável engenho e arte será acto relevante? Terá verdadeira utilidade? Em meu juízo, sim; é importante e útil muito para além do vulgarmente suposto, mesmo por quem acolhe, com agrado e sem reservas, essas iniciativas. Mas o “sim” convoca outras interrogativas: qual é então o teor e a dimensão dessa proficuidade? Em que consiste a importância da lápide? Qual o seu fundamento?

A resposta a estas questões passa, a meu ver, pela compreensão daquilo a que chamo efeito lápide.

Há, no justificar do “sim”, uma evidência imediata: o carácter informativo. Por definição, uma lápide contém uma inscrição portadora de informação sobre um facto ou relativa a uma pessoa cuja memória se celebra. Havendo amplo consenso no considerar a informação (o estar informado) coisa preferível à ausência de informação (o estar desinformado), fica demonstrada uma primeira utilidade: a de dar conhecimento. E tratando-se de objecto público, esse dar logo adquire acrescido valor, em função do volume de destinatários: toda e qualquer pessoa, cidadão ou cidadã, que aí detenha o olhar, lendo a inscrição.

Mentes que não estejam reféns de pessimismo derrotista, admitirão a possibilidade de a inscrição lapidar despertar curiosidade motivadora de posterior busca de mais informação sobre a vida e obra da figura homenageada e/ou sobre o acontecimento evocado. No caso vertente, talvez conduza alguns à audição do Vathek ou dos Paraísos Artificiais, numa sala de concertos, num CD ou no mais moderno e acessível YouTube. Adiciona-se novo proveito.

Mas a importância de uma lápide (do género aqui considerado) situa-se a nível bem mais profundo: o da estruturação dos elementos necessários ao ser humano; aquilo a que o psicólogo americano Abraham Maslow chamou “hierarquia de necessidades”.

No momento em que foi descerrada a lápide junto da porta da casa onde Luís de Freitas Branco viveu, em Paço de Arcos, iniciou-se, para o receptor da informação, um processo de alteração qualitativa daquele local. A porta, o 1º direito, o edifício, a rua diferenciam-se do resto do meio urbano. Opera-se uma ruptura, uma descontinuidade. A porta vulgar devém porta singular, adquire dimensão diferenciadora. Passa a ser algo que sobressaí, distinguindo-se na paisagem urbana, porque “foi ali que…”, “ali esteve…”, “ali aconteceu…”, “ali foi criada a obra…”. O local deixa de ser “um lugar como qualquer outro”. Misteriosa metamorfose imaterial tendente a uma sacralização do espaço. Nenhum sujeito cultivado e sensível transpõe com indiferença a porta do prédio e do andar em que Sigmund Freud viveu em Viena, nem a do apartamento de Victor Hugo na Place des Voges, nem a do, também parisiense, laboratório onde o casal Curie trabalhou, nem a das casas de Goethe e Schiller em Weimar. O enigmático impacto psicológico manifesta-se até em moradas imaginárias, “habitadas” por indivíduos criados pela pura ficção literária, como é exemplo a londrina residência do detective Sherlock Holmes, no nº221B da Baker Street.

A lápide satisfaz necessidades inscritas no topo da pirâmide de Maslow – o patamar da self-actualization, assim como também o da esteem (estima) – self-esteem, confidence, etc. Mas não se esgota aí. A associação do espaço a uma prestigiada figura histórica confere segurança; ou seja, acode a outra necessidade essencial do ser humano, mais basilar, correspondendo ao 2º patamar da classificação de Maslow.

A primatologia desenvolveu a noção de “prestígio (com a sua nebulosidade latente), mostrando, por exemplo, como em certas espécies de macacos o “prestígio” alcançado por um dos membros do grupo influi no comportamento, individual e colectivo, dos outros. Um babuíno estabelece formas de interacção distintas em função do distanciamento hierárquico em relação a outros membros do grupo, sendo que a ritualização de desigualdades através da cristalização de hierarquias concorre para a inauguração e consolidação de uma normalidade estável no existir do corpo social – instauração de um status quo. Isto satisfaz as necessidades de segurança e confiança antes referidas.

Também nós somos primatas, e quando o ser humano, como o macaco, identifica/reconhece na paisagem societal a presença (física ou imaterial) de um sujeito com prestígio, esse outro confere-lhe segurança, confiança, tranquilidade, bem-estar. Satisfaz necessidades essenciais. Isso mesmo se pode atestar empiricamente junto dos paçodearquenses em quem a figura do músico homenageado, autor do Vathek, influiu.

A lápide é um factor desse processo complexo. Aí reside a mais profunda razão da sua importância.

Não estará a sociedade contemporânea carenciada da presença activa daquilo a que gosto de chamar pessoa-referência, pessoa com prestígio? O efeito lápide, na sua imaterialidade, parece poder contrariar de algum modo esse sintoma de decadência.

João Maria de Freitas Branco
Filósofo, autor do livro Luís de Freitas Branco – O intelectual em Paço de Arcos, editado pela MAZU PRESS

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