As Barbearias
Em cada uma das fases do eterno ciclo, – do Natal às férias grandes, sem esquecer o Carnaval e a Páscoa – era sempre a mesma coisa, quase que me odiava por não ter uma terra para ir passar uns dias.
Enquanto a maioria dos meus colegas de escola iam «à terra», eu, que nascera em Lisboa, não tinha o prazer de me deslocar a qualquer lado morava em Passo dos Arcos, a vinte minutos por comboio da capital do império, e não me dava gozo nenhum ir meter-me no trânsito e na poluição da grande cidade por estes motivos ali ficava naquele lugar do litoral entre searas e mar com a insipidez e o marasmo das noites provincianas de uma terra a uma dúzia de quilómetros para cada lado do mundo cosmopolita como eu, mais uma dúzia de degredados que inventavam diversos modos de tornar as noites mais quentes e com mais acção barbearias existiam três – parece estranho citar estes estabelecimentos comerciais onde ia à força, depois de uma luta inglória com os meus pais, num tempo em que deixar crescer o cabelo era uma das muito poucas formas que se tinha para contestar a podre e ditatorial sociedade em que se vivia, mas a verdade é que agora, 30 anos depois, foi num destes locais em que se ouve falar da vida de quase todos os nossos conterrâneos que fiz uma das maiores descobertas da minha vida.
“Afinal tenho «terra»” embora tenha nascido na capital de um império já extinto vim pequenino habitar para Passo dos Arcos, aqui criei raízes e muitas amizades que nunca morreram apesar de o afastamento a que as contingências da vida me forçaram. Já no Verão quando um amigo de adolescência me desafiou levando-me a descobrir a pesca do polvo senti o calor de alguns amigos que deixei na terra onde passei a maior parte da minha vida, mas agora na cadeira da barbearia do meu amigo de há tantos anos – Toni Balão – falando da rapaziada do meu tempo percebi que estava entre os meus e que tinha uma terra – é a velha história, só se dá valor às coisas quando estamos afastados delas já que falei das três barbearias que existiam em Passo dos Arcos nos bons anos 60 do século XX aqui deixo umas curtas reflexões sobre as mesmas que modestamente poderão contribuir para uma monografia sobre o assunto havia o “Salão Azul” onde nunca me lembro de ter cortado o cabelo e que pertencia a um adepto ferrenho do Belenenses um dia soube de uma partida que uns amigos meus se propunham fazer-lhe, mas que eu saiba nunca chegaram a realizar – pela calada da noite e utilizando a mesma tinta azul com que estava escrito o nome da casa queriam mudar o «L» de Salão para «B» passando o estabelecimento a chamar-se “Sabão Azul” nunca passou de intenções, mas tinha a sua piada como a mudança de uma letra podia mudar radicalmente o nome da barbearia ainda me lembro de ver o proprietário da casa em tarde dominical de derrota belenense completamente transtornado com o mau resultado do clube do seu coração havia também a barbearia do Bandeira que frequentei até aos dezasseis anos onde deixei de ir sobretudo porque me cansei de ser tratado como uma criança mimada já media o metro e oitenta e seis centímetros que tenho hoje e o senhor Bandeira que me tinha visto crescer assim como aos meus irmãos insistia em chamar-me “Senhor Zézinho” designação que me irritava solenemente a mim que já fumava o meu cigarrinho às escondidas tinha namorada e queria ser homem à força, “Bolas! Se era senhor não podia ser Zézinho e se continuava a ser o Zézinho então era porque ainda não era homem, o que me desgostava imenso.” (Como estava enganado agora que conheço o mundo dos homens o que não dava para ser ou pelo menos para me poder continuar a comportar como o Zézinho) nesta barbearia havia também um funcionário que ostentava uma enorme unha no dedo mindinho – a primeira que vi – que causava uma certa repugnância em mim e nos meus irmãos (geralmente íamos os três cortar o cabelo ao mesmo tempo) pelo que tirávamos à sorte entre nós e em segredo a quem calharia o “Unha Grande” (assim o alcunhávamos).
Finalmente a barbearia do Inácio onde ao lado numa pequena papelaria se vendiam inesquecíveis aventuras de porradaria aos quadradinhos quando tinha dez anos dava-me imenso prazer comprar uma “coboiada” em Banda Desenhada e lê-la enquanto o velho Inácio me cortava o cabelo “à inglesa curta” como a minha mãe dizia para eu pedir, porém como o tempo não pára já só me vejo na barbearia do falecido Inácio, mas quem me corta as guedelhas da idade da rebeldia é o meu amigo Toni Balão com quem jogo à bola na praia e falo do nosso querido glorioso com um fanatismo de adolescente que irrita o meu pai de tal modo que sem nunca me criticar por eu ser um aluno “de trazer por casa” me atira agora com cara de poucos amigos «Isso sabes tu, mas a coisas das aulas está quieto!” era uma grande verdade por esta altura da minha existência pouco ou nada me interessavam as coisas da escola os meus interesses giravam à volta da letra B na música – os Beatles no futebol – o Benfica (embora um quarto do meu coração fosse da Briosa, a Académica de Coimbra) no cinema – a Brigite Bardot no amor – a «Boneca», uma miúda que namorara há alguns anos e que desejava ardentemente reconquistar cujo apelido era Bastos e que se zangara comigo por lhe ter roubado um beijo “e logo na boca!” como ela protestava.
O que acabo de dizer é tão verdade que no que respeita ao futebol lembro-me de ter decorado para o ponto de História do 3º ano os nomes dos faraós que mandaram construir as pirâmides do Gizé como se fosse a linha avançada da selecção do Egipto jogando no sistema 4-3-3: os últimos eram Kéops Kefren e Miquerinos até hoje nunca mais me esqueceu foi matemático, que digo eu? Matemática! Não falemos de coisas tristes e voltemos ao meu amigo Toni Balão treze anos mais velho que eu com quem disputei belos desafios de futebol na praia nova junto à muralha da doca.
José Aguiar Lança-Coelho
(Licenciado e Mestre em Filosofia pela FLUCL)
Escreve de acordo com
a antiga ortografia